24 November 2007

Os quarteirões que tinha percorrido a passo desnorteado, já lhes tinha perdido a conta. Decidiu abrir o envelope. As mãos trémulas com que o fez pareceram tornar o momento eterno, tempo mais que suficiente para pensar em todos os outros momentos que na altura também lhe tinham parecido eternos, mas que agora lhe pareciam tão distantes e até mesmo ridículos, apesar de quase os conseguir sentir novamente apenas por se lembrar de um toque, de um olhar, de um beijo. Lembrava-se do João, de como o amava, de como a sua relação era forte e quase doentia e de como, apesar de todos os problemas que já tinham passado, queria ficar com ele para sempre... Mas e se... E se aquilo que estava dentro do envelope não permitisse tal coisa? Porque a verdade é que também se lembrava do Francisco, de como ele tinha sido um apoio inesperado quando as coisas com o João pareciam acabadas de vez e de como a atração fisica por ele a tinha vencido nessa altura... Lembrava-se do André e da única noite a que se tinham dado ao luxo, na simplicidade do momento e sem mais nada significar, essa história que o João nunca tinha sabido. E lembrava-se de mais, do beijo, daquele beijo com o Luís que lhe tinha deixado os joelhos a fraquejar, como se o corpo humano não fosse perfeito na sua constituição e esses não conseguissem aguentar todo o peso do seu corpo. E era assim que sentia os joelhos novamente. Mas tinha de abrir e ler. Abriu. E leu. "Positivo". O movimento tão forte que se fazia notar à sua volta, naquela rua principal onde agora estava parada assumiu ares de câmara lenta. As pessoas que antes passavam ao seu lado rapidamente nas suas atarefadas vidas e dúvidas de quem não sabe se vai usar a camisola verde ou azul, agora pareciam mover-se como se estivessem no espaço, devagar, sem se ouvirem. E a verdade é que apesar de esse movimento citadino e irritantemente urbano lhe parecer agora tão vagaroso, nunca chegava realmente a parar. As pessoas continuavam. A andar, a comprar, a parar em montras a ver coisas que planeariam ter, a falar umas com as outras, a cumprimentarem outras tantas que desejariam nem sequer ter encontrado, a pensar no que iriam fazer ao almoço, a pensar no problema enorme que era a cortina nova não ter combinado completamente com a cor das almofadas do sofá, na discussão que tinham tido com fulano por causa de uma frase mal dita... E a ela, que tantas vezes se tinha intrusado nesse mesmo movimento, que se tinha tantas vezes camuflado sob essa pele urbana e que se tinha tantas vezes sentido igual a esses que agora por ela passavam, que tinha tido os mesmos pensamentos, que tinha tido os mesmos "grandes" problemas, isso tudo agora parecia tão ridículo, tão fútil, tão desnecessário... Todos os beijos, todos os momentos, todas as noites em que pensou que era simples continuar e que não iria ter o "tal" azar... O João, o Luís, o André... Porquê? Porque é que se tinha deixado ir e sentido as coisas nos "momentos que valem pela vida" como se nada mais importasse? ... Agora já nem a resposta a essa pergunta importava.
Positivo.
E se o João também? Por causa dela? "Sou a pior pessoa do mundo..." Nada importava. As pessoas não sabiam, as pessoas continuavam a caminhar. "O que é que importa agora?" As pessoas continuavam a comprar e a falar umas com as outras. "Nada." As pessoas continuavam com os seus problemas mesquinhos... E a ela, ali, naquele envelope, os seus problemas mesquinhos tinham acabado.
"Nada."

Taken: 12.05.2007 Olympus C-500