15 January 2008

Sozinho. Estava sozinho. E por incrível que pareça, era a primeira vez que se sentia assim desde o dia em que lhe tinham telefonado: "A sua esposa... faleceu." Enquanto saboreava agora a sensação de não a sentir ao seu lado (e que sabor tão amargo!), lembrava-se desse dia passo a passo. A verdade é que se lembrava de como se tinha sentido ao acordar nesse dia, de como tudo o que tinha sido feito poderia ter sido feito melhor para que se pudesse agora deitar todos os dias com a certeza de que a sua mulher tinha morrido em paz. Mas não era essa a certeza que lhe assolava os pensamentos todas as noites: sabia, no escuro sozinho na cama para dois, que ela tinha morrido enquanto as coisas entre os dois era tudo menos paz. E era nessas alturas que as lágrimas que não tinha chorado quando recebeu o telefonema começavam a cair.
Estavam juntos há alguns anos. E apesar da rotina se notar, se ter estabelecido por essa altura, sabiam bem porque é que tudo tinha começado e essa mesma razão continuava a existir. Ainda se amavam, ainda se desejavam, ainda se queriam. O amor e a paixão conseguiam coexistir e com sucesso. E naquele dia, como em tantos outros dias, tinham combinado tomar o pequeno almoço juntos. Ela levantou-se primeiro, e com um sorriso foi até à cozinha da maneira mais silenciosa possível preparar o que considerava serem as melhores coisas do mundo para se comerem pela manhã. Estava cansada, tinha trabalhado até tarde, mas ele merecia. E estava quase pronto. As torradas não tinham queimado, o doce ainda estava no frigorífico e não tinha acabado sem ela dar conta, as laranjas eram doces e fáceis de espremer, tinha arranjado a melhor flor para aquela mesa... e ele passou por tudo a correr e disse:
"Tenho de ir! Tenho um cliente hoje muito cedo e ainda nem tenho o projecto acabado para lhe mostrar!"
"Mas tinhamos combinado o pequeno-almoço..."
"Também tinhamos combinado o jantar e isso não te pareceu incomodar."
E era fabuloso como como passar dos anos, cada vez menos afirmações eram precisas para começar uma discussão. Sempre rápidas, muitas vezes leves, algumas quase sem importância, nunca originárias de zangas prolongadas. Mas aquele dia tinha sido diferente. O jantar a que ela não apareceu, o trabalho que ela e ele tanto prezavam, os pais que tanto se intrometiam na vida dos dois, as pequenas coisinhas que tinham ido ficando por dizer da parte de cada um. Tudo foi dito. As vozes elevaram-se, a ironia prevaleceu, a paixão não se notou. Tinha saído depis de dizer que preferia não estar com ela, se ficasse poderia dizer alguma mentira ainda maior. E todo o dia tinha ficado a pensar na cara dela quando lhe tinha dito isso, na maneira como ela tinha pousado o casaco que iria levar em cima da cama, no quarto para onde se tinha levado a discussão quando ela tinha começado a ignorar e a arranjar-se para o emprego também. Tinha pousado o casaco. Não ia sair, afinal. Devia estar demasiado mal com a discussão. E ainda bem. Naquele estado de nervos, nem ele sabia como estava a conduzir. E apenas às 16:38, no intervalo que fez e finalmente ligou o telemóvel para lhe poder dizer como queria fazer as pazes, soube que ela não tinha ficado em casa como pensara. "A sua esposa... faleceu." E tudo desabou.
Lembrava-se agora, anos depois, de não ter chorado, de não ter gritado, de não ter reagido. Já não podiam fazer as pazes quando chegasse a casa. Já não a ia abraçar ao fim do dia. Já não se ia deitar com ela. Já não iam voltar a discutir. E todos os anos continou a fazer o pequeno almoço como ela tinha feito naquele dia: com as mesmas coisas e para dois. Todos os anos, quando essas lágrimas começavam a cair ao deitar-se, continuou a pensar que pior que a perder no acidente, era ela tê-lo perdido a ele nessa mesma manhã.
E por não terem ficado as coisas resolvidas, nunca esteve sozinho: o quarto tinha ficado como ela sempre tinha gostado, continuava a ver todos os filmes que ela o tinha aconselhado a ver, o perfume dela continuava no mesmo sítio, o quarda fatos da parte dela estava intacto e continuava a comer as coisas que tanto tinha criticado e que só comia "porque são saudáveis, João!" As chaves dela continuavam no movél do hall de entrada. E pela primeira vez desde esse dia, ao pegar nelas para sair, porque não encontrava as suas, sentiu-se sozinho. Sentiu-se realmente sem ela, a usar e a viver as coisas de uma maneira que não a dela. Sentiu... que ela não era mais.
E o arrepio veio, as chaves caíram, a criança chorou. Foi até ao quarto. Agarrou o casaco. Pela primeira vez, agarrou o casaco que tinha ficado em cima da cama, do lado dela, quando ele lhe dissera que preferia não estar com ela. Sentiu no toque daquele casaco a pele dela que não tinha beijado nessa ultima vez que se tinham visto. Sentiu o seu cheiro, não o do perfume, o dela mesma, a identidade dela. E viu-a à sua frente. Agarrou o casaco.
E disse:
"Não devias ter ido sem a certeza de que estava tudo bem e do quanto te amava."

Taken: 05.05.2007 Olympus C-500