- Prometes que não sais daí?
- Prometo... Por favor, descansa...
Cobriu-a, com a manta que tinha trazido para ela, e beijou-a na testa. Ela fechou os olhos quase de imediato e voltou a abrir poucos segundos depois para se certificar que ele não ia sair dali. Quando o viu sentado, com o livro aberto, expirou fundo e relaxou. Teve a certeza de que podia confiar tudo nele. Quis dizer "amo-te", mas depois teve preguiça. Porque é que havia, se nunca lhe tinha dito nada antes? Pensou que se tinha simplesmente habituado a gostar dele e não falar no assunto. "Que parvoíce!", pensou. De qualquer maneira, agora sentia-se demasiado fraca para resolver o que quer que fosse. Fechou os olhos e adormeceu quase de imediato. A sala estava calma. O crepitar das chamas na lareira acesa desde que tinha chegado era um som quase sedativo.
Ele continuava a olhar de relance para ela e depois para o livro. E outra vez. E outra. Numa das vezes fechou-o. Aproximou-se dela e ficou a observá-la. Via-lhe a expressão algo perturbada, embora muito mais calma do que aquela que lhe tinha entrado pela porta a chamar o nome dele angustiantemente. Passou com o mão ao de leve na cara dela, tinha receio de a acordar. Depois o cabelo, o cabelo molhado, que lhe ficava tão bem. Aquele toque, a pele dela. Ali ficou, a olhar para ela. Começou a passar-lhe tudo pela cabeça, como uma curta metragem de má qualidade: a quantidade de anos há que já gostava dela, os momentos quase ridiculos em que lhe tentava dizer e acaba a falar de como estava bem no emprego, o estado em que ela o deixava, o modo como conhecia o cheiro dela e quase o sabor das lágrimas que tantas vezes tinha ajudado a secar, a preocupação que sentia por ela, os pequenos pormenores dela que conhecia e adorava... A mulher que tinha sofrido nas mãos do João como tinha acabado de acontecer! Começou a fazer-lhe festas no nariz e nos lábios com o nó do dedo. A luz vinha apenas do fogo trazido para dentro das casas através da eterna tentativa do Homem de controlar as forças da natureza. O jogo de luz e sombras provocado por esse tipo de iluminação só servia para realçar a beleza de tudo, capaz de tornar o mais simples objecto de decoração daquela sala num objecto de beleza quase mística. E no caso dela, místico não chegava para a descrever. E ali continuou, numa atenção capaz de permitir a memorização do ritmo de cada inspiração e expiração dela, o ritmo caracteristicamente calmo de quem dorme com segurança. Uma atenção atada a um silêncio que quase o capacitava de ouvir o coração dela bater, numa dança de sons junto com o barulho da lareira. A certeza de que lhe ia contar tudo mal ela estivesse bem ficou quase estabelecida. De joelhos, encostado ao sofá, deixou cair a cabeça e adormeceu.
A meio da noite, ela acordou. Foi a sua vez de o observar. Sorriu mal o viu assim debruçado, numa posição tão incómoda. Deixou ficar a mão debaixo da dele. Estava a senti-lo. "É maravilhoso o facto de estares na minha vida", disse baixinho. De uma maneira um tanto ou quanto desastrada, tentou beijá-lo na testa, daquela maneira tão protectora como ele conseguia fazer com ela, sempre que ela tinha o mínimo medo ou insegurança dentro de si. Beijou-o assim da maneira mais suave que conseguiu e ele respondeu, apertou a mão dela com a dele. Ela voltou a deitar a cabeça e ficou a olhar para ele, até as pálpebras fecharem involuntariamente.
Acordou com um arrepio. A sala já estava fria e viu-se iluminada por alguns pequenos raios tímidos de um sol de inverno ligeiramente envergonhado de se exibir perante as nuvens negras dominantes. Ele não estava ali. Chamou-o. E ele apareceu, com um tabuleiro. Ele tinha tentado cozinhar! Sorriu de felicidade ao ver o desastre de pequeno almoço apresentado com a maior preocupação do mundo e preparado com o maior cuidado possível, de quem tenta atingir a perfeição quando nem sabe por onde começar o imperfeito. Ele pousou-o na mesa que estava à frente do sofá. Sentou-se ao lado dela com um sorriso nervoso, de modo a ficar de frente para ela. Queria poder impressioná-la, mas quase tinha vergonha daquele pequeno almoço. Ao tentar chegar à comida, ficou com a cara a uma distância mínima da dela. Parou. Olharam-se nos olhos e os lábios dos dois aproximaram-se tanto que o calor quase era insuportável. Ele podia jurar que já sentia o toque entre eles. Ela recuou.
- Não...
Houve uma sensação de medo repentina e abrangente de todo o seu corpo. Na sala onde horas antes se ouvia apenas o som calmo da madeira que queima lentamente e vai desaparecendo, os dois ouviam agora de modo perfeitamente ensurdecedor a respiração ofegante de cada um. Ele afastou-se até à outra ponta do sofá, ao ponto possivelmente mais próximo da queda.
- Desculpa... Desculpa, isto não devia ter acontecido. Eu não o devia ter feito! Não me quis aproveitar de ti, sabes? Sabes, não sabes?
O medo desapareceu. Ela sentiu o peito demasiado pequeno para o que quer que fosse que estava a sentir. O coração ia rebentar de bater com tanta força. Foi de encontro aos lábios dele e sentiu de novo a respiração dele, quente, incerta. Ele afastou-se. Desculpou-se.
- Não... Tu... Eerm... Tu não deves ter a certeza disso. É melhor não... Não! É o melhor...
Inspirou fundo, mas a consciencia do peso dela sobre ele naquele momento era forte demais. Ela olhou-o nos olhos, mas mais além deles. Ele desviou, sentiu-se demasiado exposto, baixou o olhar. Fixou os lábios que já desejava há tanto tempo tocar, uma fracção de segundo que bastasse. As mãos trémulas e também elas aterrorizadas quase por si só, como independentes do seu corpo, tocaram na pele dela e puxaram-na para ele. A distância entre os dois passou a não poder ser descrita nem sequer com a unidade milimétrica. Beijou-a ao de leve. Quase sem se controlar e num extâse incompreensivel, beijou-a. Beijou-a como queria ter beijado há 7 anos atrás.