29 August 2007

- E eu não vou deixar-te sozinha. Olha, queres ver? Tu vais ficar aí deitada e eu vou-me sentar aqui, nesta cadeira - puxou-a e encostou-a ao sofá onde ela continuava deitada - a... a ler um livro! Vou aqui estar a ler um livro. Ok?
- Prometes que não sais daí?
- Prometo... Por favor, descansa...
Cobriu-a, com a manta que tinha trazido para ela, e beijou-a na testa. Ela fechou os olhos quase de imediato e voltou a abrir poucos segundos depois para se certificar que ele não ia sair dali. Quando o viu sentado, com o livro aberto, expirou fundo e relaxou. Teve a certeza de que podia confiar tudo nele. Quis dizer "amo-te", mas depois teve preguiça. Porque é que havia, se nunca lhe tinha dito nada antes? Pensou que se tinha simplesmente habituado a gostar dele e não falar no assunto. "Que parvoíce!", pensou. De qualquer maneira, agora sentia-se demasiado fraca para resolver o que quer que fosse. Fechou os olhos e adormeceu quase de imediato. A sala estava calma. O crepitar das chamas na lareira acesa desde que tinha chegado era um som quase sedativo.
Ele continuava a olhar de relance para ela e depois para o livro. E outra vez. E outra. Numa das vezes fechou-o. Aproximou-se dela e ficou a observá-la. Via-lhe a expressão algo perturbada, embora muito mais calma do que aquela que lhe tinha entrado pela porta a chamar o nome dele angustiantemente. Passou com o mão ao de leve na cara dela, tinha receio de a acordar. Depois o cabelo, o cabelo molhado, que lhe ficava tão bem. Aquele toque, a pele dela. Ali ficou, a olhar para ela. Começou a passar-lhe tudo pela cabeça, como uma curta metragem de má qualidade: a quantidade de anos há que já gostava dela, os momentos quase ridiculos em que lhe tentava dizer e acaba a falar de como estava bem no emprego, o estado em que ela o deixava, o modo como conhecia o cheiro dela e quase o sabor das lágrimas que tantas vezes tinha ajudado a secar, a preocupação que sentia por ela, os pequenos pormenores dela que conhecia e adorava... A mulher que tinha sofrido nas mãos do João como tinha acabado de acontecer! Começou a fazer-lhe festas no nariz e nos lábios com o nó do dedo. A luz vinha apenas do fogo trazido para dentro das casas através da eterna tentativa do Homem de controlar as forças da natureza. O jogo de luz e sombras provocado por esse tipo de iluminação só servia para realçar a beleza de tudo, capaz de tornar o mais simples objecto de decoração daquela sala num objecto de beleza quase mística. E no caso dela, místico não chegava para a descrever. E ali continuou, numa atenção capaz de permitir a memorização do ritmo de cada inspiração e expiração dela, o ritmo caracteristicamente calmo de quem dorme com segurança. Uma atenção atada a um silêncio que quase o capacitava de ouvir o coração dela bater, numa dança de sons junto com o barulho da lareira. A certeza de que lhe ia contar tudo mal ela estivesse bem ficou quase estabelecida. De joelhos, encostado ao sofá, deixou cair a cabeça e adormeceu.
A meio da noite, ela acordou. Foi a sua vez de o observar. Sorriu mal o viu assim debruçado, numa posição tão incómoda. Deixou ficar a mão debaixo da dele. Estava a senti-lo. "É maravilhoso o facto de estares na minha vida", disse baixinho. De uma maneira um tanto ou quanto desastrada, tentou beijá-lo na testa, daquela maneira tão protectora como ele conseguia fazer com ela, sempre que ela tinha o mínimo medo ou insegurança dentro de si. Beijou-o assim da maneira mais suave que conseguiu e ele respondeu, apertou a mão dela com a dele. Ela voltou a deitar a cabeça e ficou a olhar para ele, até as pálpebras fecharem involuntariamente.
Acordou com um arrepio. A sala já estava fria e viu-se iluminada por alguns pequenos raios tímidos de um sol de inverno ligeiramente envergonhado de se exibir perante as nuvens negras dominantes. Ele não estava ali. Chamou-o. E ele apareceu, com um tabuleiro. Ele tinha tentado cozinhar! Sorriu de felicidade ao ver o desastre de pequeno almoço apresentado com a maior preocupação do mundo e preparado com o maior cuidado possível, de quem tenta atingir a perfeição quando nem sabe por onde começar o imperfeito. Ele pousou-o na mesa que estava à frente do sofá. Sentou-se ao lado dela com um sorriso nervoso, de modo a ficar de frente para ela. Queria poder impressioná-la, mas quase tinha vergonha daquele pequeno almoço. Ao tentar chegar à comida, ficou com a cara a uma distância mínima da dela. Parou. Olharam-se nos olhos e os lábios dos dois aproximaram-se tanto que o calor quase era insuportável. Ele podia jurar que já sentia o toque entre eles. Ela recuou.
- Não...
Houve uma sensação de medo repentina e abrangente de todo o seu corpo. Na sala onde horas antes se ouvia apenas o som calmo da madeira que queima lentamente e vai desaparecendo, os dois ouviam agora de modo perfeitamente ensurdecedor a respiração ofegante de cada um. Ele afastou-se até à outra ponta do sofá, ao ponto possivelmente mais próximo da queda.
- Desculpa... Desculpa, isto não devia ter acontecido. Eu não o devia ter feito! Não me quis aproveitar de ti, sabes? Sabes, não sabes?
O medo desapareceu. Ela sentiu o peito demasiado pequeno para o que quer que fosse que estava a sentir. O coração ia rebentar de bater com tanta força. Foi de encontro aos lábios dele e sentiu de novo a respiração dele, quente, incerta. Ele afastou-se. Desculpou-se.
- Não... Tu... Eerm... Tu não deves ter a certeza disso. É melhor não... Não! É o melhor...
Inspirou fundo, mas a consciencia do peso dela sobre ele naquele momento era forte demais. Ela olhou-o nos olhos, mas mais além deles. Ele desviou, sentiu-se demasiado exposto, baixou o olhar. Fixou os lábios que já desejava há tanto tempo tocar, uma fracção de segundo que bastasse. As mãos trémulas e também elas aterrorizadas quase por si só, como independentes do seu corpo, tocaram na pele dela e puxaram-na para ele. A distância entre os dois passou a não poder ser descrita nem sequer com a unidade milimétrica. Beijou-a ao de leve. Quase sem se controlar e num extâse incompreensivel, beijou-a. Beijou-a como queria ter beijado há 7 anos atrás.


Taken: 19.08.07 Sony DVD 106

04 August 2007

"Não entres aí! Olha que esse chão está todo a cair!"

Não interessa, já entrei. E no mesmo momento um casal rodopiou à minha frente, em completa felicidade. E a casa não estava abandonada, o chão não estava a cair. Vi as paredes forradas com o mais resplandecente papel de parede, o chão perfeitamente encerado e brilhante, móveis da mais fina madeira colocados nos sítios perfeitos, escolhidos cuidadosamente e ao detalhe com a atenção de quem viu naquela casa a oportunidade de uma vida feliz, bibelots delicados sobrepostos em naperons de maravilhosa qualidade levada a sério por mãos calejadas de anos a manejar agulhas próprias à linha n.º 6, n.º 12... Vi tapetes, do mais refinado gosto e em perfeita harmonia com as cortinas que se me assemelharam perfeitamente cuidadas em vez dos decrépitos trapos que neste momento jazem naquele sítio. E uma mesa, uma grande mesa.
Da mesma maneira que apareceu, o casal dá lugar a um grupo barulhento, alegre, inundado com a estonteante panóplia de sons, cores, vozes e risos característica de um grupo de amigos que sabem que é uns com os outros que poderão contar nos dias à frente e que são aquelas pessoas que terão valor na altura em que cometerem os mais incompreensíveis pecados públicos ou para sempre guardados no olhar do rapaz sardento que tenta esquecer o que fez enquanto sorri ao sentir o toque da pele dela, que ao seu lado tanto tempo nunca se apercebeu do
que ele sente por ela. Há copos na mesa, copos vazios, cheios, meio cheios ou meio vazios. Há pratos com comida parcialmente devorada que mesmo assim se mantém apetecível. E cartas. As cartas que os que querem jogar sabem que nunca vão usar por causa daqueles que sabem que as suas capacidades mínimas vão ser claramente gozadas, situação que preferem evitar. Tudo brilha, tudo transmite excitação, delírio de alegria, paz e segurança. E depois viro-me.
Ouço vozes que conseguem de alguma maneira substituir os sons anteriores. São vozes ásperas e amargas, altas e exaltadas. Quase consigo sentir o medo da voz feminina quando me aproximo da porta ao meu lado direito, entreaberta e por onde escapa o aroma de um pequeno almoço preparado com o cuidado de quem se dedica à simetria da espessura da manteiga no pão torrado para evitar dedicar-se à constatação da impotência perante o desmoronar excruciantemente vagaroso da sua vida. Quase abro a porta e consigo vê-lo, a ele, de quem ela se afasta, ele, em quem ela já não confia, ele, de quem ela agora tem medo, ele, em quem ela agora não vê a pessoa que conhecia, ele, de quem foge com o medo de uma criança que foge daquele rufia que sabe que vai conseguir sentir-se superior quando a humilhar no intervalo. Passa por mim, não a correr, não a chora
r. Já não consegue.
As cortinas a combinar com os tapetes, os naperons com os ostentosos bibelots. Já nada faz sentido. Quando quase embarra contra mim, posso ver os olhos dela. Já não brilham. Nem medo são agora capazes de mostrar. Só consigo ver a apatia de quem já não espera nada da vida, de quem se resignou da melhor maneira que pôde ao futuro que se tornou num presente demasiado previsível e sem truques na manga para a fazerem sorrir. A ausência de reacção de quem sabe que, por mais que lute, por mais que tente mudar o que vive agora, nunca vai conseguir nada, porque aquilo por que lutou, aquilo por que abdicou de tanta coisa, já não vale a pena. Atravessa a sala. Até ao canto da casa onde é só ela e está sozinha num mundo em que realmente consegue ter controlo sobre alguma coisa. Deixa a pele sentir os raios de sol e fecha os olhos. Uma lágrima cai.


Foi isto que vi. Foi isto que aconteceu?

Taken: 08.04.2007 Olimpus C-500