03 September 2007

Apercebeu-se de que já estava a brincar nervosamente com o vestido havia algum tempo. A perfeição da coerência entre aquele azul tão azul e o vermelho flamejante das flores nele cuidadosamente desenhadas era surpreendentemente apelativa e enrudilhar o tecido, dobrá-lo de várias maneiras e formas diferentes, imaginá-lo rasgado, imaginá-lo como papel de parede, imaginar o mundo coberto por aquele padrão parecia-lhe uma alternativa muito mais benéfica à sua sanidade mental.
O arroz à sua frente continuava na mesma, distribuido pelo prato da maneira um tanto ao quanto aleatória com que tinha estado entretida antes de reparar naquele azul. Tinha perdido o apetite mal se tinha sentado à mesa e ao bebericar do copo de ice tea à sua frente, o pai lhe tinha perguntado "Como correram as aulas hoje?".
Meu Deus. Outra vez. A mesma coisa. A mesma pergunta tão irritantemente previsível. O mesmo assunto sempre impossível de poder explicar àquele membro da família. Era tão simples poder responder "Correram mais ou menos." Mas não. Mesmo antes de pousar o copo para responder, já ouvia perfeitamente todas as perguntas seguintes: "Mais ou menos ? O que é que isso significa? O que é que fizeste? Como é que é o exercício de Geometria? O professor é assim?". E a nenhuma dessas perguntas ia saber responder, como sempre, como em todos os outros dias. "Estou na Universidade, não há maneira de te explicar o que é uma aula mais ou menos, como é que se resolve o exercício de Geometria e porque é que eu não o consigo fazer, como é que é o professor e muito menos citar palavra por palavra e com a entoação correcta aquilo que ele disse. Porque é que queres sempre saber todos os pormenores, se a minha vida já não pertence à tua?" Sorriu. Pensou que esse seria um bom discurso como resposta. Abriu a boca e disse: "Correram bem." Desde há uns dias que tinha descoberto ser aquela a resposta mais fácil e absolvente das próximas perguntas. E rapidamente, sem mais dificuldades, já estava a ouvir o pai a falar com a mãe sobre como a Maria tinha agido mal, de como comparada com ela, a Rita era uma pessoa tão virtuosa... E imaginou que dali a uma semana estaria naquela mesa a ouvir sobre como a Rita era insuportável. Talvez dois dias. Ouviu tudo o que tinham os dois a falar mal de toda e qualquer outra pessoa, a mãe a debitar sobre os programas a que tinha assistido de manhã e que lhe pareciam tão excruciantemente aborrecidos, o relato completo que um e outro faziam das conversas tão banais e iguais a todas as outras que tinham tido com fulano e sicrano e que eram conversas "dignas de filme".
Era sempre nestas alturas, nesta situação agradavelmente familiar de extrema união, que parecia uma jovem deprimida, calada demais. Era nestas alturas que se sentia alienada daquela família, que sentia que não tinha nada a dizer mesmo que quisesse... que preferia observar ao mínimo pormenor o enquadramento daquelas flores vermelhas no fundo azul daquele seu vestido preferido.
Pensava. Fugia dali na cabeça. Lembrava-se de como se tinha rido com os amigos naquele dia, das parvoíces que tinha dito, do trabalho que tinha para fazer, do que tinha almoçado, do telefonema que lhe tinha feito para estar com ele, do beijo cheio de saudade que ele lhe tinha dado quando se encontraram, de todos os pecados que cometia com ele que a orgulhavam em vez de envergonhar. No meio daquele tédio, daquelas conversas que já não conseguia ouvir reveladoras de mentalidades que já não conseguia suportar, pensou "Se vocês soubessem..." e sorriu. Beijou a mãe na face enquanto se levantava da mesa e disse: "O jantar estava muito bom."

Ao sair da sala pensou o que todos os dias a acalentava: "Odeio aquelas pessoas. Adoro aqueles pais."

Taken: 07.09.2006 Olimpus C-500

3 comments:

.anna. said...

vim aqui parar graças ao blog do zeca (death draws near), e ainda bem.
escreves muito,muito bem. adorei!(:

continua!*

.anna. said...

:D lol! obrigadinha!!(:

(ps. es de coimbra, nao es? vi no teu perfil..)

.anna. said...

lol! adiciona-me e falamos mlhr, que tal?:) jambalaika@hotmail.com