23 September 2007

Todos os dias àquela hora, no seu recatado canto do autocarro observava aquele grupo de amigos que tinha acabado de entrar, barulhento, bem disposto, completamente harmonioso entre si. Fosse qual fosse a música presente naquele momento nos phones que lhe garantiam o luxo de se isolar completamente do resto do mundo enquanto era obrigado a circular no meio dele, aquele grupo conseguia fazer rebentar essa bolhinha de protecção. Ficava como que hipnotizado, deixava-se levar na minuciosa observação daquelas pessoas de uma maneira que o fazia a ele próprio ter noção do aspecto desesperado com que de certeza ficava.
E era sempre assim, já há tantos meses que tinham dado lugar a anos. Sentia que já os conhecia, conseguia perceber o estado de espírito de cada um em cada dia, independentemente do geral previsível estado viciantemente alegre do grupo. Sabia o nome de todos eles e identificava-se mais com o Salvador do que com o Bernardo. Todos os dias os via entrar, todos os dias acompanhava as conversas deles durante a viagem, todos os dias os via sair um a um, a despedirem-se uns dos outros, ficando cada vez menos até os ultimos dois, o casal, sairem. Todos os dias formava opiniões sobre as indignações deles, se ria com as piadas e brincadeiras, quase chorava quando um deles não entrava, preocupava-se quando notava um tom de consternação entre eles. Havia alturas em que chegava mesmo a dar margem àquilo que sabia chamar-se inveja, ao ver a união presente entre a Mariana e o Afonso. Quando se olhava no reflexo feito possível pelo vidro da janela do autocarro, pensava que já passava os seus dias à espera daquele momento. Eram eles as unicas pessoas a quem se sentia ligado. E como em todas as grandes ligações com um grupo, havia ela, cujo olhar o prendia mais que os outros.
E depois chegava a casa. Pousava as chaves no móvel da entrada, batia no aquário com o nó do dedo, o único registo de vida ali existente que não a dele. Pousava as coisas, descalçava-se, o pé esquerdo depois do direito, tirava a camisola, bebia qualquer coisa, ligava o rádio, aquele cd tão bem conseguido, pelos mestres do jazz que admirava, e sentava-se no sofá. No escuro, pensava neles e em como todo o resto dos dias, das semanas, dos meses eram vazios... e deixava as lágrimas correr, a transbordar de pena de si mesmo, que rodeado de livros, músicas, filmes, projectos, conhecimento e cultura, condecorações do emprego, estava sozinho no mundo. E pensava em como aquelas pessoas traziam uma centelha de esperança quanto a isso. E logo a seguir sorria, com desdém desse seu mesmo pensamento. Nunca iria ele entrar no autocarro com eles, a rir, contando as peripécias do dia. Iria continuar o fantasma que tudo sabia sobre eles.
Naquele dia, como sempre, baixou os olhos quando ela se virou e o fitou. Com a cabeça baixa, não conseguiu vê-la levantar-se, deixando com a maior simplicidade o lugar ao pé dos amigos que continuaram a falar de como tinha de ser o próximo fim de semana sem quase se aperceberem de nada ou quem sabe ignorando-a, visto já saberem do interesse dela por aquele elemento quase magneticamente aliciante. Ela baixou-se ao nível dele, fez-lhe sinal para ele tirar os phones e disse a sorrir: "Posso-me sentar aqui?"

Taken: 23.05.2007 Olimpus C-500

1 comment:

.anna. said...

bolas...
passei mais ou menos por isto no meu quinto ano, mas não no autocarro porque andava a pé - no banco do jardim da escola. via-os aproximar-se, conhecia todos pelo nome e não falava com ningu+em. escondia-me na musica que na altura vinha de um walkman cor de vinho meio gasto que passava a vida a cair ao chão. e foi aí que um dia o vi e resolvi que queria ficar com ele para sempre. mas o para sempre durou menos tempo do que esperámos.

e ao ler o que escreveste lembrei-me de uma musica que hoje tocou no carro, enquanto me passeava pela cidade ao fim da tarde "i felt he found my letters and read each one out loud" (da luryn hill) :)

bottomline: adorei, mesmo. como sempre não paro de dizer CONTINUA!*

amanhã quero mais.