15 January 2008

Sozinho. Estava sozinho. E por incrível que pareça, era a primeira vez que se sentia assim desde o dia em que lhe tinham telefonado: "A sua esposa... faleceu." Enquanto saboreava agora a sensação de não a sentir ao seu lado (e que sabor tão amargo!), lembrava-se desse dia passo a passo. A verdade é que se lembrava de como se tinha sentido ao acordar nesse dia, de como tudo o que tinha sido feito poderia ter sido feito melhor para que se pudesse agora deitar todos os dias com a certeza de que a sua mulher tinha morrido em paz. Mas não era essa a certeza que lhe assolava os pensamentos todas as noites: sabia, no escuro sozinho na cama para dois, que ela tinha morrido enquanto as coisas entre os dois era tudo menos paz. E era nessas alturas que as lágrimas que não tinha chorado quando recebeu o telefonema começavam a cair.
Estavam juntos há alguns anos. E apesar da rotina se notar, se ter estabelecido por essa altura, sabiam bem porque é que tudo tinha começado e essa mesma razão continuava a existir. Ainda se amavam, ainda se desejavam, ainda se queriam. O amor e a paixão conseguiam coexistir e com sucesso. E naquele dia, como em tantos outros dias, tinham combinado tomar o pequeno almoço juntos. Ela levantou-se primeiro, e com um sorriso foi até à cozinha da maneira mais silenciosa possível preparar o que considerava serem as melhores coisas do mundo para se comerem pela manhã. Estava cansada, tinha trabalhado até tarde, mas ele merecia. E estava quase pronto. As torradas não tinham queimado, o doce ainda estava no frigorífico e não tinha acabado sem ela dar conta, as laranjas eram doces e fáceis de espremer, tinha arranjado a melhor flor para aquela mesa... e ele passou por tudo a correr e disse:
"Tenho de ir! Tenho um cliente hoje muito cedo e ainda nem tenho o projecto acabado para lhe mostrar!"
"Mas tinhamos combinado o pequeno-almoço..."
"Também tinhamos combinado o jantar e isso não te pareceu incomodar."
E era fabuloso como como passar dos anos, cada vez menos afirmações eram precisas para começar uma discussão. Sempre rápidas, muitas vezes leves, algumas quase sem importância, nunca originárias de zangas prolongadas. Mas aquele dia tinha sido diferente. O jantar a que ela não apareceu, o trabalho que ela e ele tanto prezavam, os pais que tanto se intrometiam na vida dos dois, as pequenas coisinhas que tinham ido ficando por dizer da parte de cada um. Tudo foi dito. As vozes elevaram-se, a ironia prevaleceu, a paixão não se notou. Tinha saído depis de dizer que preferia não estar com ela, se ficasse poderia dizer alguma mentira ainda maior. E todo o dia tinha ficado a pensar na cara dela quando lhe tinha dito isso, na maneira como ela tinha pousado o casaco que iria levar em cima da cama, no quarto para onde se tinha levado a discussão quando ela tinha começado a ignorar e a arranjar-se para o emprego também. Tinha pousado o casaco. Não ia sair, afinal. Devia estar demasiado mal com a discussão. E ainda bem. Naquele estado de nervos, nem ele sabia como estava a conduzir. E apenas às 16:38, no intervalo que fez e finalmente ligou o telemóvel para lhe poder dizer como queria fazer as pazes, soube que ela não tinha ficado em casa como pensara. "A sua esposa... faleceu." E tudo desabou.
Lembrava-se agora, anos depois, de não ter chorado, de não ter gritado, de não ter reagido. Já não podiam fazer as pazes quando chegasse a casa. Já não a ia abraçar ao fim do dia. Já não se ia deitar com ela. Já não iam voltar a discutir. E todos os anos continou a fazer o pequeno almoço como ela tinha feito naquele dia: com as mesmas coisas e para dois. Todos os anos, quando essas lágrimas começavam a cair ao deitar-se, continuou a pensar que pior que a perder no acidente, era ela tê-lo perdido a ele nessa mesma manhã.
E por não terem ficado as coisas resolvidas, nunca esteve sozinho: o quarto tinha ficado como ela sempre tinha gostado, continuava a ver todos os filmes que ela o tinha aconselhado a ver, o perfume dela continuava no mesmo sítio, o quarda fatos da parte dela estava intacto e continuava a comer as coisas que tanto tinha criticado e que só comia "porque são saudáveis, João!" As chaves dela continuavam no movél do hall de entrada. E pela primeira vez desde esse dia, ao pegar nelas para sair, porque não encontrava as suas, sentiu-se sozinho. Sentiu-se realmente sem ela, a usar e a viver as coisas de uma maneira que não a dela. Sentiu... que ela não era mais.
E o arrepio veio, as chaves caíram, a criança chorou. Foi até ao quarto. Agarrou o casaco. Pela primeira vez, agarrou o casaco que tinha ficado em cima da cama, do lado dela, quando ele lhe dissera que preferia não estar com ela. Sentiu no toque daquele casaco a pele dela que não tinha beijado nessa ultima vez que se tinham visto. Sentiu o seu cheiro, não o do perfume, o dela mesma, a identidade dela. E viu-a à sua frente. Agarrou o casaco.
E disse:
"Não devias ter ido sem a certeza de que estava tudo bem e do quanto te amava."

Taken: 05.05.2007 Olympus C-500

24 November 2007

Os quarteirões que tinha percorrido a passo desnorteado, já lhes tinha perdido a conta. Decidiu abrir o envelope. As mãos trémulas com que o fez pareceram tornar o momento eterno, tempo mais que suficiente para pensar em todos os outros momentos que na altura também lhe tinham parecido eternos, mas que agora lhe pareciam tão distantes e até mesmo ridículos, apesar de quase os conseguir sentir novamente apenas por se lembrar de um toque, de um olhar, de um beijo. Lembrava-se do João, de como o amava, de como a sua relação era forte e quase doentia e de como, apesar de todos os problemas que já tinham passado, queria ficar com ele para sempre... Mas e se... E se aquilo que estava dentro do envelope não permitisse tal coisa? Porque a verdade é que também se lembrava do Francisco, de como ele tinha sido um apoio inesperado quando as coisas com o João pareciam acabadas de vez e de como a atração fisica por ele a tinha vencido nessa altura... Lembrava-se do André e da única noite a que se tinham dado ao luxo, na simplicidade do momento e sem mais nada significar, essa história que o João nunca tinha sabido. E lembrava-se de mais, do beijo, daquele beijo com o Luís que lhe tinha deixado os joelhos a fraquejar, como se o corpo humano não fosse perfeito na sua constituição e esses não conseguissem aguentar todo o peso do seu corpo. E era assim que sentia os joelhos novamente. Mas tinha de abrir e ler. Abriu. E leu. "Positivo". O movimento tão forte que se fazia notar à sua volta, naquela rua principal onde agora estava parada assumiu ares de câmara lenta. As pessoas que antes passavam ao seu lado rapidamente nas suas atarefadas vidas e dúvidas de quem não sabe se vai usar a camisola verde ou azul, agora pareciam mover-se como se estivessem no espaço, devagar, sem se ouvirem. E a verdade é que apesar de esse movimento citadino e irritantemente urbano lhe parecer agora tão vagaroso, nunca chegava realmente a parar. As pessoas continuavam. A andar, a comprar, a parar em montras a ver coisas que planeariam ter, a falar umas com as outras, a cumprimentarem outras tantas que desejariam nem sequer ter encontrado, a pensar no que iriam fazer ao almoço, a pensar no problema enorme que era a cortina nova não ter combinado completamente com a cor das almofadas do sofá, na discussão que tinham tido com fulano por causa de uma frase mal dita... E a ela, que tantas vezes se tinha intrusado nesse mesmo movimento, que se tinha tantas vezes camuflado sob essa pele urbana e que se tinha tantas vezes sentido igual a esses que agora por ela passavam, que tinha tido os mesmos pensamentos, que tinha tido os mesmos "grandes" problemas, isso tudo agora parecia tão ridículo, tão fútil, tão desnecessário... Todos os beijos, todos os momentos, todas as noites em que pensou que era simples continuar e que não iria ter o "tal" azar... O João, o Luís, o André... Porquê? Porque é que se tinha deixado ir e sentido as coisas nos "momentos que valem pela vida" como se nada mais importasse? ... Agora já nem a resposta a essa pergunta importava.
Positivo.
E se o João também? Por causa dela? "Sou a pior pessoa do mundo..." Nada importava. As pessoas não sabiam, as pessoas continuavam a caminhar. "O que é que importa agora?" As pessoas continuavam a comprar e a falar umas com as outras. "Nada." As pessoas continuavam com os seus problemas mesquinhos... E a ela, ali, naquele envelope, os seus problemas mesquinhos tinham acabado.
"Nada."

Taken: 12.05.2007 Olympus C-500

23 September 2007

Todos os dias àquela hora, no seu recatado canto do autocarro observava aquele grupo de amigos que tinha acabado de entrar, barulhento, bem disposto, completamente harmonioso entre si. Fosse qual fosse a música presente naquele momento nos phones que lhe garantiam o luxo de se isolar completamente do resto do mundo enquanto era obrigado a circular no meio dele, aquele grupo conseguia fazer rebentar essa bolhinha de protecção. Ficava como que hipnotizado, deixava-se levar na minuciosa observação daquelas pessoas de uma maneira que o fazia a ele próprio ter noção do aspecto desesperado com que de certeza ficava.
E era sempre assim, já há tantos meses que tinham dado lugar a anos. Sentia que já os conhecia, conseguia perceber o estado de espírito de cada um em cada dia, independentemente do geral previsível estado viciantemente alegre do grupo. Sabia o nome de todos eles e identificava-se mais com o Salvador do que com o Bernardo. Todos os dias os via entrar, todos os dias acompanhava as conversas deles durante a viagem, todos os dias os via sair um a um, a despedirem-se uns dos outros, ficando cada vez menos até os ultimos dois, o casal, sairem. Todos os dias formava opiniões sobre as indignações deles, se ria com as piadas e brincadeiras, quase chorava quando um deles não entrava, preocupava-se quando notava um tom de consternação entre eles. Havia alturas em que chegava mesmo a dar margem àquilo que sabia chamar-se inveja, ao ver a união presente entre a Mariana e o Afonso. Quando se olhava no reflexo feito possível pelo vidro da janela do autocarro, pensava que já passava os seus dias à espera daquele momento. Eram eles as unicas pessoas a quem se sentia ligado. E como em todas as grandes ligações com um grupo, havia ela, cujo olhar o prendia mais que os outros.
E depois chegava a casa. Pousava as chaves no móvel da entrada, batia no aquário com o nó do dedo, o único registo de vida ali existente que não a dele. Pousava as coisas, descalçava-se, o pé esquerdo depois do direito, tirava a camisola, bebia qualquer coisa, ligava o rádio, aquele cd tão bem conseguido, pelos mestres do jazz que admirava, e sentava-se no sofá. No escuro, pensava neles e em como todo o resto dos dias, das semanas, dos meses eram vazios... e deixava as lágrimas correr, a transbordar de pena de si mesmo, que rodeado de livros, músicas, filmes, projectos, conhecimento e cultura, condecorações do emprego, estava sozinho no mundo. E pensava em como aquelas pessoas traziam uma centelha de esperança quanto a isso. E logo a seguir sorria, com desdém desse seu mesmo pensamento. Nunca iria ele entrar no autocarro com eles, a rir, contando as peripécias do dia. Iria continuar o fantasma que tudo sabia sobre eles.
Naquele dia, como sempre, baixou os olhos quando ela se virou e o fitou. Com a cabeça baixa, não conseguiu vê-la levantar-se, deixando com a maior simplicidade o lugar ao pé dos amigos que continuaram a falar de como tinha de ser o próximo fim de semana sem quase se aperceberem de nada ou quem sabe ignorando-a, visto já saberem do interesse dela por aquele elemento quase magneticamente aliciante. Ela baixou-se ao nível dele, fez-lhe sinal para ele tirar os phones e disse a sorrir: "Posso-me sentar aqui?"

Taken: 23.05.2007 Olimpus C-500

03 September 2007

Apercebeu-se de que já estava a brincar nervosamente com o vestido havia algum tempo. A perfeição da coerência entre aquele azul tão azul e o vermelho flamejante das flores nele cuidadosamente desenhadas era surpreendentemente apelativa e enrudilhar o tecido, dobrá-lo de várias maneiras e formas diferentes, imaginá-lo rasgado, imaginá-lo como papel de parede, imaginar o mundo coberto por aquele padrão parecia-lhe uma alternativa muito mais benéfica à sua sanidade mental.
O arroz à sua frente continuava na mesma, distribuido pelo prato da maneira um tanto ao quanto aleatória com que tinha estado entretida antes de reparar naquele azul. Tinha perdido o apetite mal se tinha sentado à mesa e ao bebericar do copo de ice tea à sua frente, o pai lhe tinha perguntado "Como correram as aulas hoje?".
Meu Deus. Outra vez. A mesma coisa. A mesma pergunta tão irritantemente previsível. O mesmo assunto sempre impossível de poder explicar àquele membro da família. Era tão simples poder responder "Correram mais ou menos." Mas não. Mesmo antes de pousar o copo para responder, já ouvia perfeitamente todas as perguntas seguintes: "Mais ou menos ? O que é que isso significa? O que é que fizeste? Como é que é o exercício de Geometria? O professor é assim?". E a nenhuma dessas perguntas ia saber responder, como sempre, como em todos os outros dias. "Estou na Universidade, não há maneira de te explicar o que é uma aula mais ou menos, como é que se resolve o exercício de Geometria e porque é que eu não o consigo fazer, como é que é o professor e muito menos citar palavra por palavra e com a entoação correcta aquilo que ele disse. Porque é que queres sempre saber todos os pormenores, se a minha vida já não pertence à tua?" Sorriu. Pensou que esse seria um bom discurso como resposta. Abriu a boca e disse: "Correram bem." Desde há uns dias que tinha descoberto ser aquela a resposta mais fácil e absolvente das próximas perguntas. E rapidamente, sem mais dificuldades, já estava a ouvir o pai a falar com a mãe sobre como a Maria tinha agido mal, de como comparada com ela, a Rita era uma pessoa tão virtuosa... E imaginou que dali a uma semana estaria naquela mesa a ouvir sobre como a Rita era insuportável. Talvez dois dias. Ouviu tudo o que tinham os dois a falar mal de toda e qualquer outra pessoa, a mãe a debitar sobre os programas a que tinha assistido de manhã e que lhe pareciam tão excruciantemente aborrecidos, o relato completo que um e outro faziam das conversas tão banais e iguais a todas as outras que tinham tido com fulano e sicrano e que eram conversas "dignas de filme".
Era sempre nestas alturas, nesta situação agradavelmente familiar de extrema união, que parecia uma jovem deprimida, calada demais. Era nestas alturas que se sentia alienada daquela família, que sentia que não tinha nada a dizer mesmo que quisesse... que preferia observar ao mínimo pormenor o enquadramento daquelas flores vermelhas no fundo azul daquele seu vestido preferido.
Pensava. Fugia dali na cabeça. Lembrava-se de como se tinha rido com os amigos naquele dia, das parvoíces que tinha dito, do trabalho que tinha para fazer, do que tinha almoçado, do telefonema que lhe tinha feito para estar com ele, do beijo cheio de saudade que ele lhe tinha dado quando se encontraram, de todos os pecados que cometia com ele que a orgulhavam em vez de envergonhar. No meio daquele tédio, daquelas conversas que já não conseguia ouvir reveladoras de mentalidades que já não conseguia suportar, pensou "Se vocês soubessem..." e sorriu. Beijou a mãe na face enquanto se levantava da mesa e disse: "O jantar estava muito bom."

Ao sair da sala pensou o que todos os dias a acalentava: "Odeio aquelas pessoas. Adoro aqueles pais."

Taken: 07.09.2006 Olimpus C-500

29 August 2007

- E eu não vou deixar-te sozinha. Olha, queres ver? Tu vais ficar aí deitada e eu vou-me sentar aqui, nesta cadeira - puxou-a e encostou-a ao sofá onde ela continuava deitada - a... a ler um livro! Vou aqui estar a ler um livro. Ok?
- Prometes que não sais daí?
- Prometo... Por favor, descansa...
Cobriu-a, com a manta que tinha trazido para ela, e beijou-a na testa. Ela fechou os olhos quase de imediato e voltou a abrir poucos segundos depois para se certificar que ele não ia sair dali. Quando o viu sentado, com o livro aberto, expirou fundo e relaxou. Teve a certeza de que podia confiar tudo nele. Quis dizer "amo-te", mas depois teve preguiça. Porque é que havia, se nunca lhe tinha dito nada antes? Pensou que se tinha simplesmente habituado a gostar dele e não falar no assunto. "Que parvoíce!", pensou. De qualquer maneira, agora sentia-se demasiado fraca para resolver o que quer que fosse. Fechou os olhos e adormeceu quase de imediato. A sala estava calma. O crepitar das chamas na lareira acesa desde que tinha chegado era um som quase sedativo.
Ele continuava a olhar de relance para ela e depois para o livro. E outra vez. E outra. Numa das vezes fechou-o. Aproximou-se dela e ficou a observá-la. Via-lhe a expressão algo perturbada, embora muito mais calma do que aquela que lhe tinha entrado pela porta a chamar o nome dele angustiantemente. Passou com o mão ao de leve na cara dela, tinha receio de a acordar. Depois o cabelo, o cabelo molhado, que lhe ficava tão bem. Aquele toque, a pele dela. Ali ficou, a olhar para ela. Começou a passar-lhe tudo pela cabeça, como uma curta metragem de má qualidade: a quantidade de anos há que já gostava dela, os momentos quase ridiculos em que lhe tentava dizer e acaba a falar de como estava bem no emprego, o estado em que ela o deixava, o modo como conhecia o cheiro dela e quase o sabor das lágrimas que tantas vezes tinha ajudado a secar, a preocupação que sentia por ela, os pequenos pormenores dela que conhecia e adorava... A mulher que tinha sofrido nas mãos do João como tinha acabado de acontecer! Começou a fazer-lhe festas no nariz e nos lábios com o nó do dedo. A luz vinha apenas do fogo trazido para dentro das casas através da eterna tentativa do Homem de controlar as forças da natureza. O jogo de luz e sombras provocado por esse tipo de iluminação só servia para realçar a beleza de tudo, capaz de tornar o mais simples objecto de decoração daquela sala num objecto de beleza quase mística. E no caso dela, místico não chegava para a descrever. E ali continuou, numa atenção capaz de permitir a memorização do ritmo de cada inspiração e expiração dela, o ritmo caracteristicamente calmo de quem dorme com segurança. Uma atenção atada a um silêncio que quase o capacitava de ouvir o coração dela bater, numa dança de sons junto com o barulho da lareira. A certeza de que lhe ia contar tudo mal ela estivesse bem ficou quase estabelecida. De joelhos, encostado ao sofá, deixou cair a cabeça e adormeceu.
A meio da noite, ela acordou. Foi a sua vez de o observar. Sorriu mal o viu assim debruçado, numa posição tão incómoda. Deixou ficar a mão debaixo da dele. Estava a senti-lo. "É maravilhoso o facto de estares na minha vida", disse baixinho. De uma maneira um tanto ou quanto desastrada, tentou beijá-lo na testa, daquela maneira tão protectora como ele conseguia fazer com ela, sempre que ela tinha o mínimo medo ou insegurança dentro de si. Beijou-o assim da maneira mais suave que conseguiu e ele respondeu, apertou a mão dela com a dele. Ela voltou a deitar a cabeça e ficou a olhar para ele, até as pálpebras fecharem involuntariamente.
Acordou com um arrepio. A sala já estava fria e viu-se iluminada por alguns pequenos raios tímidos de um sol de inverno ligeiramente envergonhado de se exibir perante as nuvens negras dominantes. Ele não estava ali. Chamou-o. E ele apareceu, com um tabuleiro. Ele tinha tentado cozinhar! Sorriu de felicidade ao ver o desastre de pequeno almoço apresentado com a maior preocupação do mundo e preparado com o maior cuidado possível, de quem tenta atingir a perfeição quando nem sabe por onde começar o imperfeito. Ele pousou-o na mesa que estava à frente do sofá. Sentou-se ao lado dela com um sorriso nervoso, de modo a ficar de frente para ela. Queria poder impressioná-la, mas quase tinha vergonha daquele pequeno almoço. Ao tentar chegar à comida, ficou com a cara a uma distância mínima da dela. Parou. Olharam-se nos olhos e os lábios dos dois aproximaram-se tanto que o calor quase era insuportável. Ele podia jurar que já sentia o toque entre eles. Ela recuou.
- Não...
Houve uma sensação de medo repentina e abrangente de todo o seu corpo. Na sala onde horas antes se ouvia apenas o som calmo da madeira que queima lentamente e vai desaparecendo, os dois ouviam agora de modo perfeitamente ensurdecedor a respiração ofegante de cada um. Ele afastou-se até à outra ponta do sofá, ao ponto possivelmente mais próximo da queda.
- Desculpa... Desculpa, isto não devia ter acontecido. Eu não o devia ter feito! Não me quis aproveitar de ti, sabes? Sabes, não sabes?
O medo desapareceu. Ela sentiu o peito demasiado pequeno para o que quer que fosse que estava a sentir. O coração ia rebentar de bater com tanta força. Foi de encontro aos lábios dele e sentiu de novo a respiração dele, quente, incerta. Ele afastou-se. Desculpou-se.
- Não... Tu... Eerm... Tu não deves ter a certeza disso. É melhor não... Não! É o melhor...
Inspirou fundo, mas a consciencia do peso dela sobre ele naquele momento era forte demais. Ela olhou-o nos olhos, mas mais além deles. Ele desviou, sentiu-se demasiado exposto, baixou o olhar. Fixou os lábios que já desejava há tanto tempo tocar, uma fracção de segundo que bastasse. As mãos trémulas e também elas aterrorizadas quase por si só, como independentes do seu corpo, tocaram na pele dela e puxaram-na para ele. A distância entre os dois passou a não poder ser descrita nem sequer com a unidade milimétrica. Beijou-a ao de leve. Quase sem se controlar e num extâse incompreensivel, beijou-a. Beijou-a como queria ter beijado há 7 anos atrás.


Taken: 19.08.07 Sony DVD 106

04 August 2007

"Não entres aí! Olha que esse chão está todo a cair!"

Não interessa, já entrei. E no mesmo momento um casal rodopiou à minha frente, em completa felicidade. E a casa não estava abandonada, o chão não estava a cair. Vi as paredes forradas com o mais resplandecente papel de parede, o chão perfeitamente encerado e brilhante, móveis da mais fina madeira colocados nos sítios perfeitos, escolhidos cuidadosamente e ao detalhe com a atenção de quem viu naquela casa a oportunidade de uma vida feliz, bibelots delicados sobrepostos em naperons de maravilhosa qualidade levada a sério por mãos calejadas de anos a manejar agulhas próprias à linha n.º 6, n.º 12... Vi tapetes, do mais refinado gosto e em perfeita harmonia com as cortinas que se me assemelharam perfeitamente cuidadas em vez dos decrépitos trapos que neste momento jazem naquele sítio. E uma mesa, uma grande mesa.
Da mesma maneira que apareceu, o casal dá lugar a um grupo barulhento, alegre, inundado com a estonteante panóplia de sons, cores, vozes e risos característica de um grupo de amigos que sabem que é uns com os outros que poderão contar nos dias à frente e que são aquelas pessoas que terão valor na altura em que cometerem os mais incompreensíveis pecados públicos ou para sempre guardados no olhar do rapaz sardento que tenta esquecer o que fez enquanto sorri ao sentir o toque da pele dela, que ao seu lado tanto tempo nunca se apercebeu do
que ele sente por ela. Há copos na mesa, copos vazios, cheios, meio cheios ou meio vazios. Há pratos com comida parcialmente devorada que mesmo assim se mantém apetecível. E cartas. As cartas que os que querem jogar sabem que nunca vão usar por causa daqueles que sabem que as suas capacidades mínimas vão ser claramente gozadas, situação que preferem evitar. Tudo brilha, tudo transmite excitação, delírio de alegria, paz e segurança. E depois viro-me.
Ouço vozes que conseguem de alguma maneira substituir os sons anteriores. São vozes ásperas e amargas, altas e exaltadas. Quase consigo sentir o medo da voz feminina quando me aproximo da porta ao meu lado direito, entreaberta e por onde escapa o aroma de um pequeno almoço preparado com o cuidado de quem se dedica à simetria da espessura da manteiga no pão torrado para evitar dedicar-se à constatação da impotência perante o desmoronar excruciantemente vagaroso da sua vida. Quase abro a porta e consigo vê-lo, a ele, de quem ela se afasta, ele, em quem ela já não confia, ele, de quem ela agora tem medo, ele, em quem ela agora não vê a pessoa que conhecia, ele, de quem foge com o medo de uma criança que foge daquele rufia que sabe que vai conseguir sentir-se superior quando a humilhar no intervalo. Passa por mim, não a correr, não a chora
r. Já não consegue.
As cortinas a combinar com os tapetes, os naperons com os ostentosos bibelots. Já nada faz sentido. Quando quase embarra contra mim, posso ver os olhos dela. Já não brilham. Nem medo são agora capazes de mostrar. Só consigo ver a apatia de quem já não espera nada da vida, de quem se resignou da melhor maneira que pôde ao futuro que se tornou num presente demasiado previsível e sem truques na manga para a fazerem sorrir. A ausência de reacção de quem sabe que, por mais que lute, por mais que tente mudar o que vive agora, nunca vai conseguir nada, porque aquilo por que lutou, aquilo por que abdicou de tanta coisa, já não vale a pena. Atravessa a sala. Até ao canto da casa onde é só ela e está sozinha num mundo em que realmente consegue ter controlo sobre alguma coisa. Deixa a pele sentir os raios de sol e fecha os olhos. Uma lágrima cai.


Foi isto que vi. Foi isto que aconteceu?

Taken: 08.04.2007 Olimpus C-500